terça-feira, 21 de janeiro de 2014

O RESPEITO AO DIFERENTE

O RESPEITO AO DIFERENTE

Vivemos numa sociedade localmente globalizada, onde nossas ações, experiências e vivências são globalmente locais.
Vivemos numa sociedade em que o pluralismo cultural e religioso dita a moda, a mídia e tudo o mais que se relaciona com o agir do ser humano. Eles se impõem, independente se você aceita ou não.
O meu e o seu ponto de vista deveria ser sempre a vista de um ponto.
Mas, infelizmente, não é assim que as coisas funcionam nesta sociedade em que o fundamentalismo religioso, o preconceito, impede o respeito, o encontro e o debate com o outro, com o diferente.
Como é possível viver uma religião, se esta e seus interlocutores não religam a terra com o céu, o profano com o sagrado, o corpo com a alma, o homem e a mulher?
Como é possível viver uma religião, se esta e seus pastores e padres não se sentem à vontade para dialogar com sinceridade e fraternura? E passam para seus rebanhos que o outro não está salvo por crer diferente, que é herege, infiel e diabólico!
Revisar a vida é um passo muito importante, mas quem hoje em sã consciência tem coragem para admitir os próprios erros? Sem que estes erros sejam usados nos programas religiosos das madrugadas na TV para aguçar o emocional humano psicologicamente perturbado, por isso, aberto a qualquer investida paliativa do sagrado.
Foram 20 séculos de exclusivismo cristão. Foram dois mil anos em que o cristianismo tem pensado – local, global, oficial e majoritariamente – ser a única religião verdadeira, enquanto todas as outras religiões seriam falsas.
Há religiões muito mais antigas que o cristianismo!
Há conceitos éticos e morais, muito mais acessíveis do que a ética e a moral cristã.
Cristo era cristão?
Ele não conviveu com pessoas diferentes e suas diferenças no seu tempo?
Onde estão os profetas e as profetisas, onde estão as discípulas e os discípulos que anunciam e denunciam?
A profecia morreu?
Como podemos entender o grito, o choro e o lamento dos primeiros habitantes da Nossa América, que ao atualizarem o memorial-fonte, relembram, com lágrimas e dores as violências cometidas pelos europeus?

“Nós índios dos Andes e da América, decidimos aproveitar a visita de João Paulo II para devolver-lhe sua Bíblia, porque em cinco séculos ela não nos deu nem amor, nem paz, nem justiça. Por favor, tome de novo sua Bíblia e devolva-a a nossos opressores, porque eles necessitam de seus preceitos morais mais do que nós. Porque desde a chegada de Cristovão Colombo, impôs-se à América pela força uma cultura, uma língua, uma religião e valores próprios da Europa. A Bíblia chegou a nós como parte do projeto colonial imposto. Ela foi a arma ideológica desse assalto colonialista. A espada espanhola que de dia atacava e assassinava o corpo dos índios, de noite se convertia na cruz que atava a alma índia”. [1]

Os povos indígenas estão errados ao fazerem este lamentoso, sentido e verdadeiro pedido ao Papa? Se estão errados, qual é este erro? Como ler a Bíblia se ela foi usada para matar seres humanos? De que outra forma expressariam sua vontade de serem livres, por séculos aprisionada e assassinada?

O poeta sente e pensa diferente. Por isso muitas vezes não é compreendido e a perseguição velada ou explicita acontece e ele adoece por não conseguir compreender por que é difícil aceitar o outro? A única forma que possui para se fazer ouvir vem em forma de palavras, comovidas e ácidas:

CONVIVER COM A DIFERENÇA [2]

o grande desafio do mundo
é conviver com a diferença
de aromas, texturas, sons e cores
sabores que no profundo ou nas alturas
deveriam encantar as pessoas

infelizmente nem todas
conseguem aceitar
aquilo que a princípio assusta
ver o sol a partir de tantos olhares
é ver o belo no diferente

e se nos fazem sangrar e jorrar
só terão como resposta o vermelho
no chão, nossas sombras são iguais
seremos sementes e flores nos quintais
já não terá valor aquele espelho

a grande opção é viver em harmonia
descobrindo a partir das duras derrotas
que cada um, cada uma, é companhia
na edificação do outro mundo possível
aprendendo e ensinando sempre uma nova rota

Como fazer acontecer o diálogo interreligioso e ecumênico, se todas as mudanças são vistas como heresias e deturpações da ordem já estabelecida?
As mudanças não são também sopro do Espírito? Não são vontades do próprio Deus?
Apressadamente se julgam as pessoas que trabalham na construção de um outro mundo possível, esquecendo-se que há lugar para todos.

Lembro-me de uma parábola contada pelo querido amigo carmelita Frei Carlos Mesters, no final da década de 1990 e que até hoje, rende para o próprio, adjetivos, como: herege, infiel, lobo vermelho, padre comunista, entre outros. Mas quem o acusa não se esforça para saber qual foi o contexto em que a parábola foi escrita, qual foi a contribuição do autor para a caminhada da Igreja no Brasil e no Continente. É muito fácil somente acusar, levantar falsos testemunhos e dizer que nada do que escreve não presta...podemos pensar que a inveja é muito maior do que qualquer outro sentimento.
Quando há respeito, há o encontro e há o diálogo. É uma via de mão-dupla. É um caminho árduo, mas não impossível. Mesters já deu um passo significativo nesta direção, sem abrir mão de sua fé. Pelo contrário, sempre dialogou chegando primeiro com um sorriso e depois com um abraço bem apertado. Sempre se manteve fiel às suas convicções enquanto carmelita, enquanto parte do Magistério e do Povo desta Igreja. Eis a parábola:

UMA PARÁBOLA [3][4]

Quando Deus andou no mundo, a São Pedro disse assim:

Certa vez, Jesus reuniu os discípulos e as discípulas e disse: “Quando você forem anunciar o Reino, não devem levar dinheiro nem comida, mas devem confiar no povo. Chegando num lugar, se vocês forem acolhidos e o povo partilhar comida e casa com vocês, e se vocês participarem da vida deles trabalhando e tratando dos doentes e do pessoal marginalizado, sem voz nem vez, então podem dizer ao povo com toda a certeza: “Gente! Olhe aqui! O Reino chegou! Está chegando!”. E eles foram.
Jesus também foi. Andou, andou. Já era quase noite. Estava começando a escurecer, quando chegou num terreiro. O pessoal que entrava, saudava e dizia: “Boa Noite, Jesus! Sinta-se em casa. Participe com a gente!”. Jesus entrou. Viu o pessoal reunido. A maioria era pobre. Alguns, não muitos, da classe média. Todo o mundo dançando, alegre. Havia muita criança no meio. Viu como todos eles se abraçavam entre si. Viu como os brancos eram acolhidos pelos negros como irmãos. Jesus, ele também, foi sendo acolhido e abraçado. Estranhou, pois conheciam o nome dele. Eles o chamavam de Jesus, como se fossem amigo e irmão de longa data. Gostou de ser acolhido assim.
Via também como a mãe-de-santo recebia o abraço de todos e como ela retribuía acolhendo a todos. Viu como invocavam os orixás e como alguns vinham distribuindo passes para ajudar os aflitos, os doentes e os necessitados. Jesus também entrou na fila e foi até a mãe-de-santo. Quando chegou a vez dele, abraçou-a e ela disse: “A paz esteja com você, Jesus!”. Jesus respondeu: “Com a senhora também!”. E acrescentou: “Posso fazer uma pergunta?”. E ela disse: “Pois não Jesus!”. E ele disse: “Como é que a senhora me conhece? Como é que eles sabem o meu nome?”. E ela disse: “Mas Jesus, aqui todo o mundo conhece você. Você é muito amigo da gente. Sinta-se em casa, aqui no meio de nós!”.
Jesus olhou para ela e disse: “Muito obrigado!”. E continuou: “Mãe, estou gostando, pois o Reino de Deus já está aqui no meio de vocês!”. Ela olhou para ele e disse: “Muito obrigada, Jesus! Mas isto a gente já sabia. Ou melhor, já adivinhava! Obrigado por confirmar a gente. Você deve ter um orixá muito bom. Vamos dançar, para que ele venha nos ajudar!”. E Jesus entrou na dança. Dentro dele o coração pulava de alegria. Sentia uma felicidade imensa e dizia baixinho: “Pai eu te agradeço, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelaste ao povo humilde aqui do terreiro. Sim, Pai, assim foi do teu agrado!”. Dançou um tempão. No fim comeu pipoca, cocada e batata assada com óleo de dendê, que o pessoal partilhava com ele. E dentro dele, o coração repetia, sem cessar: “Sim, o Reino de Deus chegou! Pai, eu te agradeço! Assim foi do teu agrado!”

Fico imaginando que além desta proposta de colocar Jesus no encontro e no diálogo com as Religiões Africanas, podemos também colocá-lo no encontro com Muhammad e o Islamismo, no encontro com Siddhartha Gautama e o Budismo, no encontro com Kung-Fu-Tse e o Confucionismo, no encontro com todas as Religiões Indígenas, entre tantas outras, sem denegrir a ética, o amor, a mensagem, a humanidade e a divindade de Jesus, pois ele mesmo se colocava nesta direção quando iniciava colóquios com o centurião romano, com a cananéia, com a samaritana...ele não deixou de ser judeu para anunciar uma vida em abundância para todos.
Qual é o medo de convivermos com o diferente?
Qual é o medo que se tem em dialogar numa sociedade que é plural?
Jesus é fruto de uma particularidade histórica que caminha para a universalidade salvífica:
“O primeiro pressuposto é partir da particularidade histórica e geográfica de Jesus de Nazaré para chegar a universalidade do Cristo da fé. Nem as primeiras comunidades, nem os apóstolos tiveram conhecimento imediato de que em Jesus Cristo acontecia a revelação definitiva de Deus. Para eles, Jesus de Nazaré era um bom judeu, praticamente piedoso, reformador de práticas judaicas que diziam respeito à lei e ao templo. Em sua proposta significativamente revolucionária em termos religiosos e, a partir daí, sociais, políticos e culturais, eles perceberam que esse evento dizia respeito não somente ao entorno judaico, mas devia ser levado ao conhecimento e ao seguimento de todos os seres humanos.
Fora dessa particularidade histórica, geográfica, profundamente humana, de Jesus de Nazaré, o cristianismo transforma-se em idéia, ideologia, símbolo; o próprio Cristo torna-se mito. Como se sabe, idéias e ideologias que não estejam baseadas em práticas só conseguem impor-se pela força da razão e do poder. Elas não somente impedem o acesso às práticas, mas as encobrem e mascaram. Práticas, ao contrário, não se impõem; elas valem por si, como testemunho; são frutos da experiência, referem-se diretamente ao chão da existência. Analogamente, os símbolos que não estejam enraizados na realidade perdem seu significado, seu conteúdo, tornam-se magia. Esse é o risco constante do cristianismo: fora da pessoa e da prática de Jesus, transmuda-se em puro símbolo e magia, pura idéia e ideologia. Magia que desconecta a fé da realidade, tirando-lhe o vigor transformador e libertador. Ideologia que aliena a fé, justificando atitudes e instituições opressoras. O cristianismo, para anunciar a verdade salvífica de Cristo, deve referir-se constantemente à pessoa e à prática de Jesus. Sem Jesus, não há Cristo. É de Jesus, de sua particularidade histórica, que deve partir sempre a cristologia. Sobretudo em seu diálogo com as outras religiões.
Quando, no diálogo com as religiões, tomamos como ponto de partida a universalidade de Jesus Cristo, como Deus feito homem, morto e ressuscitado para a salvação de todos os seres humanos, uma universalidade que normalmente encobre sua particularidade histórica, geográfica, cultural, social, política, etc., somos imediatamente levados a impor nossa concepção religiosa sobre os outros. Partimos do pressuposto de que já temos toda a verdade, de que devemos, portanto, anunciá-la aos outros. O cristianismo cometeu graves pecados em sua história, por causa dessa concepção não-cristã de verdade e de prática evangelizadora, pecados pelos quais hoje freqüentemente acusados e dos quais somos convidados a pedir perdão, conduzidos pela sábia decisão de João Paulo II. Há de se ter em mente que a verdade de Cristo é a obra de Deus, e não conquista humana, é dom de Deus a ser partilhado, e não imposto. Por isso, torna-se necessário impostar a reflexão cristológica para o diálogo inter-religioso dentro de uma “humildade soteriológica” que retome a singular humanidade de Jesus.
Além disso, os cristãos de hoje são levados à preguiça e à indiferença se desconhecem que a universalidade da pessoa e da ação de Cristo se manifestou para nós numa particularidade situada e que foi sendo aos poucos explicitada pelos primeiros grandes teólogos do cristianismo, em penoso trabalho de reflexão teológica, de ação pastoral e de evangelização inculturada. Recebemos a verdade pronta, acabada, julgando que basta agora impô-la à força. Cruzam-se os braços, julgando que a obra da inculturação do Evangelho terminou com a tomada do Império Romano, com a cristianização de toda a civilização ocidental, com a conquista das maiorias para o rebanho da Igreja. Esquece-se que os primeiros tempos do cristianismo apresentaram a verdade do Evangelho tendo em conta o respeito por dois flancos de realidade: a particularidade situada de Jesus de Nazaré e as particularidades culturais, lingüísticas, filosóficas etc., igualmente situadas, nas quais o Evangelho ia sendo semeado.
Urge, portanto, partir da humanidade particular, concreta e empírica de Jesus de Nazaré para chegar à divindade de Jesus Cristo e à pretensão de seu significado universal. Nem os apóstolos, nem as primeiras comunidades cristãs experimentaram de modo explicito o encontro com a divindade em Jesus de Nazaré. De certa maneira, o próprio Jesus de Nazaré não sabia que era Deus. Foi no encontro com as obscuridades da vida e no diálogo amoroso e religioso com o Pai, que Jesus foi se dando conta de sua missão messiânica e de sua identidade divina”. [5]

E aí pode-se perguntar: por que a teologia é necessariamente pluralista?
Primeiro, pois o Mistério da fé é transcendente, superando infinitamente todo entendimento humano e não se esgotando jamais numa única forma de interpretação. Segundo, pois esse mesmo entendimento teológico é sempre contextual: está situado sem escapatória dentro de uma cultura determinada, sendo que o campo cultural é justamente o campo das variedades.
O pluralismo teológico é legítimo, necessário e inevitável.
O respeito ao diferente é legítimo, necessário e inevitável se você quer continuar acreditando e professando sua fé.


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[1] VIGIL, José Maria. Teologia do Pluralismo Religioso – para uma releitura do cristianismo. São Paulo: Paulus, 2006.
[2] TAVARES, Emerson Sbardelotti. Utopia Poética. São Leopoldo: CEBI, 2007.
[3] NONO Encontro Intereclesial. São Paulo: Salesiana, 1996.
[4] CÍRCULOS Bíblicos. Sub-Regional do Espírito Santo: 1997.
[5] FELLER, Vitor Galdino. O Sentido da Salvação – Jesus e as religiões. São Paulo: Paulus, 2005.

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Emerson Sbardelotti

Autor de O MISTÉRIO E O SOPRO – roteiros para acampamentos juvenis e reuniões de grupos de jovens. Brasília: CPP, 2005. Pedidos pelo site www.cpp.com.br
Autor de UTOPIA POÉTICA. São Leopoldo: CEBI, 2007. Pedidos pelo site www.cebi.org.br

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