sábado, 27 de novembro de 2010

VELHO ANDARILHO

Contavam os antigos, que numa rua da cidade, chutando pequenas pedras e recolhendo latas de alumínio, o velho andarilho não passava despercebido pelas pessoas que apressadas não paravam para conversar com ele, ou simplesmente lhe dar um “bom dia”, um “como vai”, um “como tem passado”.

Ele seguia em frente...todos os dias, a mesma rotina.

Ninguém sabia a quanto tempo ele vivia na rua. Tinha gente que tinha nascido e morrido, e ele já vivia na rua.

Dizem que no passado, havia sido um homem muito importante daquela cidade e que perdeu tudo por causa do amor.

Não era de falar muito, tinha cabelos brancos compridos, barba branca comprida, bem ao velho estilo hippie...mas fazia tempo que havia deixado o sexo, as drogas...o rock n roll...bem...esse estava dentro dele.

De certa forma, era uma pessoa gentil, pois gostava das crianças que implicavam com ele, chamando o de Beato Conselheiro, e realmente, ele lembrava o Beato Antonio Conselheiro, mas sem a veste; ninguém nunca o viu em confusão, ou bêbado, ou drogado. Ficava horas sentado olhando o mar e os navios que chegavam no Porto de Vitória-ES, abria os braços como se quisesse abraçar tudo o que via, e sem nada dizer saia correndo.

Até hoje ninguém sabe ao certo o nome dele, por isso, irei chamá-lo como as crianças fazem: Beato Conselheiro.

A primeira vez que eu o vi, ele estava fazendo um discurso inflamado na Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória-ES, depois que um pastor com cara de poucos amigos, olhando para ele disse que ele era a encarnação do Capeta. O Beato não gostou, mas educadamente, esperou a sua vez para falar. Como o pastor não lhe dava a vez para falar, levantou-se do banco onde estava e começou a fazer a sua defesa:

- Caríssimo pastor, estimados transeuntes, irmãos moradores de rua. Gostaria de proferir algumas palavras em defesa própria: muito me estranha que um homem que se diz de Deus, faça acusações levianas a respeito de uma pessoa que não conhece, que não vive com ela, que não experimentou do mesmo sofrimento e da mesma alegria que experimento. Acredito que Deus não mandou ele fazer isso (apontando para o pastor). E eu pergunto: o senhor realmente conhece a Deus? Ele lhe passou uma procuração dando-lhe plenos direitos para acusar e julgar qualquer pessoa a seu bel prazer? Com qual autoridade o senhor me acusa de ser a encarnação do Capeta? Se é que o Capeta existe.

Todos que ouviam caíram na gargalhada. Ele levantou a mão pedindo para continuar.

- Vocês me conhecem a muitos anos, vi pessoas crescerem e morrerem e eu aqui, nesta praça, caminhando pelas ruas da Capital, sem nada falar, sem mexer com ninguém, apenas catando latinhas, papelão, fazendo um ou outro serviço, dormindo pelos cantos e tomando banho todos os dias.

Outras risadas.

- Vocês sabem que nunca fiz o mal, nem o desejei para ninguém, mesmo quando alguns jovens drogados, de madrugada, me bateram por nada, e tive que ficar meses no hospital, sem a visita, sem o cuidado de ninguém. Eu não sou o Capeta pastor, mas o senhor é. Pois não é feliz...eu sou feliz...eu sou livre. Se o fato de o senhor me ver vestido como estou, com cabelo e barba grande, mal cuidado, lhe dá o direito de acusar e julgar, então não pode ser de Deus, pois Deus nunca acusou ninguém.

As pessoas ficaram espantadas com a firmeza e a convicção do Beato Conselheiro que ao ver o pastor e seus seguidores se retirando pois não conseguiam dar uma resposta a altura, o velho andarilho saiu gritando atrás dele:



- Lembro-me das palavras do filósofo:

"Se Deus existe a solução seria Deus,

mas como Deus não existe,

o muro está próximo".

E pude formular um pensamento herético:

- o gozo espiritual é parte fundamental

da substancialidade da alma;

e para tanto é preciso alcançar

a autotranscêndencia

e penetrar no âmago do ser

para poder atingir o ápice do gozo carnal

- Não me perguntem o que é isso,

pois, depois de Sartre...

me tornei o ser e o nada!



E berrou todas essas palavras até perder de vista o carro importado do pastor se afastando e sumindo.

As pessoas aplaudiram o Beato Conselheiro que aproveitou para pedir uns trocadinhos, afinal, ele também era Filho de Deus. A gargalhada foi imediata, e a ajuda também.

O velho beato estava muito feliz, pois viu que as pessoas agora sabiam que ele era um ser humano, não era um bicho, que havia feito escolhas: certas e erradas, e pagou caro por todas elas.

Viu um rapaz com um violão na mão e disse que gostaria de tocar uma canção antiga, pornográfica, que havia feito quando observava a lua cheia na baia de Vitória-ES, lembrando da sua única paixão e amor, pegou o violão e tocou o velho e bom rock n roll.

- Quero mostrar para vocês uma canção que fiz a muito tempo atrás. Ela se chama: ESTOU EM PAZ!

Pegou o violão...deu uma tossida e mandou ver:



- Eu deixei de ser punheteiro

cansei de ficar horas no banheiro

olhando seu retrato

toda nua na parede

em poses tão exóticas

baby, eu não sabia que era erótica

eu olho as minhas mãos

estão as duas caleijadas

são doenças e paixões

faz tempo que perdi a razão

eu sinto o seu corpo em mim

mas você está tão longe do jardim

você é tão bonita assim

ingênua e felina

deixei de ser down e estou aí

eu deixei de ser punheteiro

cansei de ficar horas no banheiro

se você soubesse

quantos dias fiquei sem dormir

eu queria estar aí

baby, eu queria estar dentro de ti

eu olho minhas mãos

abro os meus braços

coloco óculos e disfarço

a vida é linda

mas a sua bunda é muito mais

quando estou contigo

estou em paz!



Foi aplaudido por mais de meia hora.

Devolveu o violão ao rapaz e voltou a catar as latinhas espalhadas pelo chão.

Dizem que depois disso ninguém mais se meteu à besta com ele, e era bem querido por todos que o encontravam.

Nunca mais falou em praça pública ou cantou.

Até hoje, quem ouviu, quem viu o Beato Conselheiro, entendeu que a loucura é o tesão das pessoas que se dizem normais.

A loucura do Beato era o amor não correspondido, amor que o fez ser livre.

Dizem que disso ele nunca abriu mão.

Quando morreu, estava caminhando; sempre em frente...era o que dizia quando passava por alguém que sorria para ele; foi enterrado com honras de Estado, por serviços prestados aos moradores de rua, andarilhos como ele.

Dizem que hoje em dia ainda é visto por muitas pessoas, nas noites de lua cheia caminhando pelo calçadão da baia de Vitória-ES.



Título: Velho Andarilho ®

Autor: Emerson Sbardelotti

27 de novembro de 2010

12:13

sábado, 13 de novembro de 2010

YVY MARÃ EI

YVY MARÃ EI (A TERRA SEM MALES)
- Releitura do Êxodo 3: enquanto vejo Tupinikins e Guarani sendo mortos pela Aracruz Celulose -
Muito tempo depois morreu o Imperador do Mal, e os Filhos do Sol, gemendo sob o peso da escravidão e da extinção, clamavam, e do fundo da escravidão e da extinção o seu clamor subiu até Tupã. E Tupã ouviu os seus lamentos e gemidos; Tupã lembrou-se do dia em que dançou com os grandes caciques, com os grandes pajés, com os grandes xamãs com os grandes anciãos. Tupã viu o os Filhos do Sol e os conheceu e se compadeceu.
Eis que caçava e pescava Galdino, Pataxó Hã-Hã-Hãe, as margens do Araguaia, próximo aos Karajás, num território que já não pertencia a ele, nem aos seus semelhantes, muito menos aos seus antepassados e isso aumentava ainda mais o sofrimento que trazia em sua alma. E Tupã lhe apareceu no meio dos toros. Os toros originaram o Quarup. E os toros dançavam, como se estivessem vivos e estavam. E os toros dançavam ao som do canto dos pássaros da floresta, ao som de tambores que Galdino nunca tinha ouvido antes. E Galdino disse: "Darei uma volta e verei este fenômeno estranho, verei por que os toros dançam, como se vivos estivessem, como se guerreiros fossem".
E Tupã viu que Galdino deu uma volta para ele ver. E Tupã o chamou: "Galdino, Pataxó Hã-Hã-Hãe".
Galdino respondeu: "Eis-me aqui".
Tupã disse: "Eis a Criação! Dance! Dance para te aproximar. Eis a Pacha Mama e teus antepassados, eis a Grande Gaia! Eu sou Tupã! Eu sou Tupã!"
E Galdino dançou, e ouviu os cantos dos pássaros e dos tambores. E dançou ao redor dos toros onde estava Tupã.
E disse Tupã: "Eu vi, eu vi a miséria do meu povo que está nesta terra continental. Ouvi o seu clamor, o seu lamento por causa dos opressores; pois eu conheço as suas angústias. Por isso desci a fim de liberta-lo da mão do Mal, e para faze-lo subir desta terra a uma terra boa e vasta, terra onde se pesca e caça, onde se planta e colhe, terra onde não existe a morte, onde não há extinção, terra em que não há exclusão. Agora o clamor dos Filhos do Sol chegou até a mim, e também sinto a opressão com que o Mal está oprimindo. Vai, agora, pois eu te enviarei para subir desta terra e ir para o lugar que se chamaYvy marã ei, onde dançaremos a feliz dança da vida".
Então Galdino disse a Tupã: "Como farei sair os Filhos do Sol para a terra sem males?"
"Eu estarei contigo", disse Tupã. E disse ainda: "Vai, reúne os caciques e anciãos e diga-lhes: "Tupã, o Deus de nossos pais, de nossas mães, me apareceu dizendo: "Subirão todos para Yvy marã ei, e dançaremos a dança da vida".
Mas disse Galdino: "Não nos deixarão sair. Seremos assassinados... Destruirão nossa cultura. Nos queimarão vivos enquanto dormimos!"
E disse Tupã: "Estenderei minha mão e ferirei aquele que se diz poderoso. Neste dia a onça pintada não sairá para caçar, o jacaré não entrará no rio, as piranhas não se alimentarão, os pássaros não irão voar nem cantarão, pois Tupã ferirá a casa d'Aquele que se diz poderoso. Se ouvirá em toda a floresta, vale ou campina, na praia ou sertão, o som da guerra em favor do meu povo. E quando todo o povo indígena partir, uma vida nova estará nascendo por essa nova estrada em que caminham os meus guerreiros, as minhas guerreiras.
Eis a terra que lhes dou: Yvy marã ei!"
E Galdino saiu da presença de Tupã com seu espírito fortalecido. Sentira agora, coisas que o sofrimento apagara de seu coração guerreiro. Correndo pela floresta fez a experiência plena na certeza da vitória, pois Tupã desceu e se fez indígena no meio do seu povo.

Emerson Sbardelotti
Prêmio Páginas Neobíblicas da Agenda Latinoamericamundial 2003.