TENTANDO “DEFINIR”
A NATUREZA DA LITURGIA
Frei José Ariovaldo da Silva
Partamos da
própria palavra liturgia. É uma palavra de origem grega (leitourgía; verbo: leitourgein;
substantivo pessoal: leitourgós), incorporada em nossa
língua portuguesa. Ela provém da composição de laós [jônico; leós; ático] (= povo) e de érgon
(= obra/serviço/ação). Traduzido literalmente, leitourgía
significa serviço feito para o povo, ou, serviço diretamente prestado para
o bem comum. Por exemplo, alguém participa de um mutirão... Os gregos
diriam: Está fazendo uma liturgia. Alguém, ou um grupo,
põe-se a construir uma ponte ou a organizar uma festa... Os gregos diriam: Está
fazendo liturgia. Um sacerdote põe-se a prestar um serviço no templo...
Está fazendo liturgia[1].
Por que? Porque são obras, serviços, ações em favor do povo, em favor das pessoas,
em favor da comunidade humana, em favor da vida humana.
Ora, nesta linha
de pensamento, me vem a esta altura uma pergunta pertinente que, a meu ver, nos
conduz a reflexões posteriores muito interessantes. A pergunta é esta: quem
realizou e continua a realizar as maiores ações em favor da comunidade humana?
Ou, para sermos fiéis a terminologia grega, quem realiza as melhores liturgias?
A experiência religiosa nos mostra que é Deus. Todo o Antigo Testamento é um grande
canto e uma imensa narrativa das ações do senhor em favor do povo eleito.
A grande experiência religiosa do povo eleito foi precisamente a de ter pouco a
pouco descoberto – foi-lhe sendo revelado! – Deus como Aquele que, através
de fatos, acontecimentos, pessoas, profetas, sábios etc., age
na História em favor do seu povo (= faz liturgia!) e o salva.
A experiência do êxodo é típica e paradigmática. Deus foi sendo descoberto
sempre mais intensamente, sobretudo pelos sábios e profetas, como Aquele que,
fielmente e com eterna misericórdia (Sl 135), opera a salvação do povo.
Um Deus libertador, solidário, misericordioso, fiel, um Deus perdão, um Deus
que ama a vida do seu povo, um Deus que tudo faz para que o povo tenha
salvação, isto é, vida plena.
Desse jeito Deus
é! Assim é a sua política[2]!
Permanente ação (serviço) em favor da vida do seu povo – liturgia! A
palavra liturgia me faz lembrar que Deus é deste jeito. Então, por que
não dizer que liturgia é o próprio jeito de Deus como ação amorosa em favor da
humanidade? O específico jeito de ser de Deus é liturgia! Por que não
dizer que Deus é a perfeição da liturgia, a própria fonte de toda liturgia?[3].
Esta Liturgia
– com maiúsculo! – a gente celebra.
Interessante que
esta aproximação teológica de liturgia bate perfeitamente com a visão
profética de culto. Se Deus é assim, então nossa melhor homenagem a Deus é fazer
o que ele faz, realizar as suas obras. E as festas, ritos e sacrifícios? São
exatamente para manter acesos em nós tanto a memória do operar de Deus como o
nosso consequente compromisso com a Liturgia divina, para sermos
felizes. Caso contrário, festas, sacrifícios, uso da arca, existência do
templo, tornam-se vazios. Deixam de ser um lugar onde o Deus vivo da história
se encontra com seu povo.
O jeito de Deus
como perfeição da liturgia tornou-se bem claro para nós na plenitude dos tempos,
isto é, com Jesus Cristo e o seu mistério pascal. Deus Pai nos prestou este
grande serviço: Ele nos deu o Filho. Aí está: A liturgia do Pai nos
oferece o Filho! E o Filho vive a liturgia do Pai entre nós, porque,
como sabemos, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a
própria vida para a salvação de muita gente (Mc 10,45). O gesto de
Jesus de lavar os pés dos discípulos é um exemplo e um sinal do modo de ser litúrgico
de Jesus a ser imitado por todos nós (cf. Jo 13,1-17).
Mas é sobretudo
na paixão, morte e ressurreição de Jesus que aparece de maneira acabada a liturgia
divina. Feito radicalmente servo de todos e exaltado como
Senhor (cf. Fl 2,5-11), Jesus triunfou sobre o pecado e a morte,
ressuscitando-nos para a vida eterna (cf. 1Cor 15,12-28). Imagine que obra ele
realizou! A saber, libertou-nos da escravidão do pecado e da morte, fazendo-nos
passar para a liberdade dos filhos e filhas reconciliados de Deus. É a máxima
obra (liturgia) em favor da vida da humanidade. No mistério pascal,
sempre atual porque Cristo está vivo, vislumbramos a maior e mais inigualável liturgia!
Pois resolveu-se definitivamente para nós o angustiante problema da morte. Instaurou-se
uma nova ordem no mundo e no cosmos, que nós chamamos Reino de Deus: que obra
pública grandiosa! Que liturgia! A maior de todas!... Esta Liturgia
a gente celebra.
Então, por que não
dizer que liturgia é a própria vida de Jesus, vivida no amor até as
últimas consequências em favor do Reino da vida? Presença
do jeito litúrgico de Deus entre nós. E daí, por que não dizer que em
Jesus vemos a perfeição da liturgia divina? Por que não dizer
que em seu mistério pascal se nos dá a fonte da liturgia? Por isso, com a
carta aos Hebreus podemos proclamar que Jesus Cristo é o liturgo por excelência
(Hb 8,2.6; 10,11-12). Esta Liturgia a gente celebra.
Ora, de tudo o
que vimos até aqui, você já pode deduzir o que pode significar celebrar
a Liturgia, qual o sentido de uma celebração litúrgica cristã. A palavra
celebrar
vem do adjetivo célebre! Você sabe o que é célebre?
Quer dizer importante, inesquecível, irrenunciável, famoso, conhecido. Transformando
o adjetivo célebre em verbo ativo, temos então celebrar. Celebrar,
portanto, significa tornar célebre, fazer memória de algo muito importante. Algo muito
importante e decisivo se torna presente pela memória que dele fazemos. E como
se dá isso? Através de todos os nossos sentidos, usando palavras, símbolos,
expressões corporais, gestos e ações simbólicas, música, etc.
E celebrar a Liturgia?
Celebrar a Liturgia significa: Tornar célebre, fazer solene memória da Liturgia
divina sempre viva e atual no meio de nós. Basta lembrar que o próprio
Cristo, na última ceia, nos deu esta ordem: Façam isto em memória de mim
(Cf. Lc 22,19; 1Cor 11,24-25). Quer dizer: Por esta ação eucarística, vocês vão tornar
célebre (sempre atual) a liturgia eternamente viva que vocês estão percebendo
em mim e em vocês mesmos, reunidos em meu nome. O memorial da Liturgia
divina se dá também nos outros sacramentos, nos sacramentais, no ofício
divino, nas celebrações da Palavra e em tantas outras celebrações em nome do
Senhor. Numa palavra: A Liturgia divina se comunica a nós
pela memória que dela fazemos. E como isto se dá? De maneira sensível, a saber,
em comunhão com todos os nossos sentidos, valorizando as expressões simbólicas
e culturais da comunidade humana que celebra.
Daí segue que celebrar
a Liturgia hoje significa: no Espírito que nos foi dado, fazer
experiência comunitária da presença viva da Liturgia divina (mistério
pascal – da ação da Trindade) na celebração litúrgica[4]. Na
ação celebrativa que realizamos em nome do Senhor, fazemos a experiência da
presença da Liturgia divina como núcleo do evangelho fermentando a nossa
História, e que nos convoca a um renovado compromisso com o Reino.
Por isso, chamo a
Liturgia celebrada de a melhor evangelização, pois ali é o
próprio Senhor vivo e ressuscitado – o Libertador: Liturgia viva! – quem fala,
ensina, comunica-se com seu povo e o liberta. Explicitar, na celebração
litúrgica, esta presença viva da Liturgia divina comunicando seu amor, da
melhor maneira possível a partir das nossas culturas, eis um grande desafio. Vice-versa:
A Liturgia
divina deseja se comunicar – se dar! – a nós de maneira mais humana e
comprometedora possível, como outrora na forma cultural judaica, no judeu Jesus
de Nazaré, e agora em forma litúrgico-celebrativa também brasileira. O desafio
está em discernirmos uma forma litúrgico-celebrativa tal que nela possamos
realmente, como comunidade cristã culturalmente localizada, sentir a presença
viva e atuante da Páscoa de Jesus Cristo (Liturgia!), da Política de Deus,
ontem, hoje e sempre.
PERGUNTAS
PARA REFLEXÃO PESSOAL E EM GRUPOS:
1) O que nos chama a atenção neste artigo?
2) Qual é a definição mais apropriada de Liturgia para os dias
atuais?
3) Porque a Liturgia é a melhor evangelização?
[1] Interessante que o próprio apóstolo
Paulo e a carta aos Hebreus usam o termo liturgia neste sentido de serviço
em favor dos outros. Epafrodito presta serviços aos cristãos de
Jerusalém, recolhendo esmolas para eles (2Cor 9,12). Os anjos servem
a Deus em favor dos seres humanos (Hb 1,7.14).
[2] Entendo política aqui como a arte
de tornar e manter humana a vida (cf. COX, Harvey. A cidade de homem. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, p. 278, 1968). Ruben Alves a define como a arte de fazer
deste mundo um paraíso, onde todos fraternalmente possam ter vez e voz (cf.
Vídeo sobre O Símbolo, produzido pelo Colégio Arquidiocesano de São Paulo).
[3] Cf. J. Corbon, Liturgia de Fonte,
Paulinas, São Paulo, 1991.
[4] O grande teólogo liturgista S. Marsili
chama a liturgia celebrada de momento histórico da salvação (cf. Anámnesis
1: A liturgia, momento histórico da salvação, Paulinas, São Paulo,
1987, p. 37ss) e de primária experiência espiritual cristã (título do seu artigo,
in: T. Goffi – Secondin (Org.), Problemi e prospettive di Spiritualità,
Queriniana, Brescia, 1983, p. 249-276). Note-se que o atual Catecismo
da Igreja Católica intitula a Liturgia como obra da Santíssima Trindade
(cf. edição conjunta Vozes/Paulinas/Loyola/Ave-Maria, Petrópolis/São Paulo,
1993, p. 265).
Nenhum comentário:
Postar um comentário