terça-feira, 16 de maio de 2017

TENTANDO "DEFINIR" A NATUREZA DA LITURGIA

TENTANDO “DEFINIR” A NATUREZA DA LITURGIA
Frei José Ariovaldo da Silva




           Partamos da própria palavra liturgia. É uma palavra de origem grega (leitourgía; verbo: leitourgein; substantivo pessoal: leitourgós), incorporada em nossa língua portuguesa. Ela provém da composição de laós [jônico; leós; ático] (= povo) e de érgon (= obra/serviço/ação). Traduzido literalmente, leitourgía significa serviço feito para o povo, ou, serviço diretamente prestado para o bem comum. Por exemplo, alguém participa de um mutirão... Os gregos diriam: Está fazendo uma liturgia. Alguém, ou um grupo, põe-se a construir uma ponte ou a organizar uma festa... Os gregos diriam: Está fazendo liturgia. Um sacerdote põe-se a prestar um serviço no templo... Está fazendo liturgia[1]. Por que? Porque são obras, serviços, ações em favor do povo, em favor das pessoas, em favor da comunidade humana, em favor da vida humana.
            Ora, nesta linha de pensamento, me vem a esta altura uma pergunta pertinente que, a meu ver, nos conduz a reflexões posteriores muito interessantes. A pergunta é esta: quem realizou e continua a realizar as maiores ações em favor da comunidade humana? Ou, para sermos fiéis a terminologia grega, quem realiza as melhores liturgias? A experiência religiosa nos mostra que é Deus. Todo o Antigo Testamento é um grande canto e uma imensa narrativa das ações do senhor em favor do povo eleito. A grande experiência religiosa do povo eleito foi precisamente a de ter pouco a pouco descoberto – foi-lhe sendo revelado! – Deus como Aquele que, através de fatos, acontecimentos, pessoas, profetas, sábios etc., age na História em favor do seu povo (= faz liturgia!) e o salva. A experiência do êxodo é típica e paradigmática. Deus foi sendo descoberto sempre mais intensamente, sobretudo pelos sábios e profetas, como Aquele que, fielmente e com eterna misericórdia (Sl 135), opera a salvação do povo. Um Deus libertador, solidário, misericordioso, fiel, um Deus perdão, um Deus que ama a vida do seu povo, um Deus que tudo faz para que o povo tenha salvação, isto é, vida plena.
            Desse jeito Deus é! Assim é a sua política[2]! Permanente ação (serviço) em favor da vida do seu povo – liturgia! A palavra liturgia me faz lembrar que Deus é deste jeito. Então, por que não dizer que liturgia é o próprio jeito de Deus como ação amorosa em favor da humanidade? O específico jeito de ser de Deus é liturgia! Por que não dizer que Deus é a perfeição da liturgia, a própria fonte de toda liturgia?[3]. Esta Liturgia – com maiúsculo! – a gente celebra.
            Interessante que esta aproximação teológica de liturgia bate perfeitamente com a visão profética de culto. Se Deus é assim, então nossa melhor homenagem a Deus é fazer o que ele faz, realizar as suas obras. E as festas, ritos e sacrifícios? São exatamente para manter acesos em nós tanto a memória do operar de Deus como o nosso consequente compromisso com a Liturgia divina, para sermos felizes. Caso contrário, festas, sacrifícios, uso da arca, existência do templo, tornam-se vazios. Deixam de ser um lugar onde o Deus vivo da história se encontra com seu povo.
            O jeito de Deus como perfeição da liturgia tornou-se bem claro para nós na plenitude dos tempos, isto é, com Jesus Cristo e o seu mistério pascal. Deus Pai nos prestou este grande serviço: Ele nos deu o Filho. Aí está: A liturgia do Pai nos oferece o Filho! E o Filho vive a liturgia do Pai entre nós, porque, como sabemos, o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a própria vida para a salvação de muita gente (Mc 10,45). O gesto de Jesus de lavar os pés dos discípulos é um exemplo e um sinal do modo de ser litúrgico de Jesus a ser imitado por todos nós (cf. Jo 13,1-17).
            Mas é sobretudo na paixão, morte e ressurreição de Jesus que aparece de maneira acabada a liturgia divina. Feito radicalmente servo de todos e exaltado como Senhor (cf. Fl 2,5-11), Jesus triunfou sobre o pecado e a morte, ressuscitando-nos para a vida eterna (cf. 1Cor 15,12-28). Imagine que obra ele realizou! A saber, libertou-nos da escravidão do pecado e da morte, fazendo-nos passar para a liberdade dos filhos e filhas reconciliados de Deus. É a máxima obra (liturgia) em favor da vida da humanidade. No mistério pascal, sempre atual porque Cristo está vivo, vislumbramos a maior e mais inigualável liturgia! Pois resolveu-se definitivamente para nós o angustiante problema da morte. Instaurou-se uma nova ordem no mundo e no cosmos, que nós chamamos Reino de Deus: que obra pública grandiosa! Que liturgia! A maior de todas!... Esta Liturgia a gente celebra.
            Então, por que não dizer que liturgia é a própria vida de Jesus, vivida no amor até as últimas consequências em favor do Reino da vida? Presença do jeito litúrgico de Deus entre nós. E daí, por que não dizer que em Jesus vemos a perfeição da liturgia divina? Por que não dizer que em seu mistério pascal se nos dá a fonte da liturgia? Por isso, com a carta aos Hebreus podemos proclamar que Jesus Cristo é o liturgo por excelência (Hb 8,2.6; 10,11-12). Esta Liturgia a gente celebra.
            Ora, de tudo o que vimos até aqui, você já pode deduzir o que pode significar celebrar a Liturgia, qual o sentido de uma celebração litúrgica cristã. A palavra celebrar vem do adjetivo célebre! Você sabe o que é célebre? Quer dizer importante, inesquecível, irrenunciável, famoso, conhecido. Transformando o adjetivo célebre em verbo ativo, temos então celebrar. Celebrar, portanto, significa tornar célebre, fazer memória de algo muito importante. Algo muito importante e decisivo se torna presente pela memória que dele fazemos. E como se dá isso? Através de todos os nossos sentidos, usando palavras, símbolos, expressões corporais, gestos e ações simbólicas, música, etc.
            E celebrar a Liturgia? Celebrar a Liturgia significa: Tornar célebre, fazer solene memória da Liturgia divina sempre viva e atual no meio de nós. Basta lembrar que o próprio Cristo, na última ceia, nos deu esta ordem: Façam isto em memória de mim (Cf. Lc 22,19; 1Cor 11,24-25). Quer dizer: Por esta ação eucarística, vocês vão tornar célebre (sempre atual) a liturgia eternamente viva que vocês estão percebendo em mim e em vocês mesmos, reunidos em meu nome. O memorial da Liturgia divina se dá também nos outros sacramentos, nos sacramentais, no ofício divino, nas celebrações da Palavra e em tantas outras celebrações em nome do Senhor. Numa palavra: A Liturgia divina se comunica a nós pela memória que dela fazemos. E como isto se dá? De maneira sensível, a saber, em comunhão com todos os nossos sentidos, valorizando as expressões simbólicas e culturais da comunidade humana que celebra.
            Daí segue que celebrar a Liturgia hoje significa: no Espírito que nos foi dado, fazer experiência comunitária da presença viva da Liturgia divina (mistério pascal – da ação da Trindade) na celebração litúrgica[4]. Na ação celebrativa que realizamos em nome do Senhor, fazemos a experiência da presença da Liturgia divina como núcleo do evangelho fermentando a nossa História, e que nos convoca a um renovado compromisso com o Reino.
            Por isso, chamo a Liturgia celebrada de a melhor evangelização, pois ali é o próprio Senhor vivo e ressuscitado – o Libertador: Liturgia viva! – quem fala, ensina, comunica-se com seu povo e o liberta. Explicitar, na celebração litúrgica, esta presença viva da Liturgia divina comunicando seu amor, da melhor maneira possível a partir das nossas culturas, eis um grande desafio. Vice-versa: A Liturgia divina deseja se comunicar – se dar! – a nós de maneira mais humana e comprometedora possível, como outrora na forma cultural judaica, no judeu Jesus de Nazaré, e agora em forma litúrgico-celebrativa também brasileira. O desafio está em discernirmos uma forma litúrgico-celebrativa tal que nela possamos realmente, como comunidade cristã culturalmente localizada, sentir a presença viva e atuante da Páscoa de Jesus Cristo (Liturgia!), da Política de Deus, ontem, hoje e sempre.

PERGUNTAS PARA REFLEXÃO PESSOAL E EM GRUPOS:

1) O que nos chama a atenção neste artigo?
2) Qual é a definição mais apropriada de Liturgia para os dias atuais?
3) Porque a Liturgia é a melhor evangelização?





[1] Interessante que o próprio apóstolo Paulo e a carta aos Hebreus usam o termo liturgia neste sentido de serviço em favor dos outros. Epafrodito presta serviços aos cristãos de Jerusalém, recolhendo esmolas para eles (2Cor 9,12). Os anjos servem a Deus em favor dos seres humanos (Hb 1,7.14).
[2] Entendo política aqui como a arte de tornar e manter humana a vida (cf. COX, Harvey. A cidade de homem. Rio de Janeiro: Paz e Terra, p. 278, 1968). Ruben Alves a define como a arte de fazer deste mundo um paraíso, onde todos fraternalmente possam ter vez e voz (cf. Vídeo sobre O Símbolo, produzido pelo Colégio Arquidiocesano de São Paulo).
[3] Cf. J. Corbon, Liturgia de Fonte, Paulinas, São Paulo, 1991.
[4] O grande teólogo liturgista S. Marsili chama a liturgia celebrada de momento histórico da salvação (cf. Anámnesis 1: A liturgia, momento histórico da salvação, Paulinas, São Paulo, 1987, p. 37ss) e de primária experiência espiritual cristã (título do seu artigo, in: T. Goffi – Secondin (Org.), Problemi e prospettive di Spiritualità, Queriniana, Brescia, 1983, p. 249-276). Note-se que o atual Catecismo da Igreja Católica intitula a Liturgia como obra da Santíssima Trindade (cf. edição conjunta Vozes/Paulinas/Loyola/Ave-Maria, Petrópolis/São Paulo, 1993, p. 265).

Nenhum comentário: