terça-feira, 16 de maio de 2017

LEITURA POPULAR DA BÍBLIA

LEITURA POPULAR DA BÍBLIA
Frei Carlos Mesters, O. Carm.*


I – Critérios de leitura da Bíblia

1.        Existe uma leitura da Bíblia feita pelos pobres deste Continente nas suas Comunidades Eclesiais de Base. A leitura dos pobres, apesar das diferenças próprias de cada povo, tem algumas características comuns a todos:

a.      Os pobres levam consigo para dentro da Bíblia os problemas da sua vida; leem a Bíblia a partir da sua realidade e da sua luta.
b.      A leitura é feita em comunidade; ela é antes de tudo, um ato de fé, uma prática orante, uma atividade comunitária.
c.       Eles fazem uma leitura obediente; respeitam o texto, pois se colocam à escuta do que Deus tem a dizer, dispostos a mudar se Ele o exigir.

2.      Esta prática tão simples dos pobres é fundamentalmente fiel à prática da mais antiga Tradição da Igreja. Por isso mesmo, ela nos oferece os princípios ou critérios que devem orientar a leitura e o estudo que vamos fazer da Bíblia, e nos aponta o objetivo que esta leitura quer alcançar na nossa vida.
3.       O objetivo: escutar Deus hoje. FÉ COMUNIDADE + POVO REALIDADE + TEXTO BÍBLIA.
4.      Quando articulados entre si, estes três critérios geram um tipo de leitura bíblica, cujas características são as seguintes:

II – Características da leitura cristã da Bíblia

1.       Leitura que parte da REALIDADE

a.      A certeza maior que a Bíblia nos comunica é esta: Deus escuta o clamor do seu povo oprimido. Ele está presente na vida e na história deste povo para libertar. Por isso, como o povo e como Jesus, devemos levar para dentro da Bíblia a realidade conflitiva em que vivemos e que faz o povo gritar de dor. A situação do povo deve estar sempre presente durante a leitura da Bíblia. Antes de recorrer à Bíblia, Jesus quis conhecer a situação dos dois discípulos de Emaús: De que estão falando? Por que estão tristes?
b.      Por isso mesmo, também no estudo da Bíblia, a primeira preocupação deve ser: descobrir, através de uma leitura atenta do texto, a realidade concreta e conflitiva do povo que gerou o texto e em vista da qual ele foi formulado.
c.       Na maneira de estudar a situação do tempo da Bíblia, convém utilizar os mesmos critérios de análise que usamos para estudar a situação econômica, social, política e religiosa do povo de hoje. Isto permite realizar o confronto entre a problemática de hoje e de ontem, de que falava o Papa Paulo VI no seu discurso aos exegetas italianos.

2.      Leitura feita em COMUNIDADE

a.      A Bíblia é o livro do povo, da comunidade, da Igreja. Por isso, o lugar da sua leitura é a comunidade. A norma da sua interpretação é a fé da comunidade, da Igreja. Mesmo fazendo leitura individual, estou lendo o livro da comunidade, da Igreja. O sentido que se procura é um sentido comunitário, que eu, como indivíduo, devo assumir por ser membro da comunidade. Interpretar é, antes de tudo, uma tarefa comunitária, em que todos participam. Não é tarefa de um único fulano que estudou mais do que os outros. O estudioso, o exegeta, participa com sua parte e se coloca a serviço, como todo mundo.
b.      A descoberta do sentido que a Bíblia tem para nós não é fruto só do estudo, mas também da ação do Espírito Santo. Isto exige que se crie um ambiente de participação, de fé, de oração e de celebração, que dê espaço à ação do Espírito Santo, o mesmo Espírito que está na origem da Bíblia e que, conforme a promessa de Jesus, nos vai revelar o sentido das suas palavras. A oração cria o espaço necessário para a escuta do apelo do Espírito Santo.
c.       A leitura e a interpretação da Bíblia não podem ser atividades separadas do resto da vida da comunidade, mas envolvem, animam e dinamizam todas as atividades e lutas dos membros da comunidade. Isto terá o seu reflexo sobre o método e as dinâmicas que se adotam.
d.      No estudo do texto, devemos ter a preocupação não só em descobrir qual era a realidade do povo daquele tempo, mas também como o texto expressava a fé da comunidade daquele tempo e como ele respondia àquela situação concreta e conflitiva em que o povo se encontrava.

3.      Leitura que respeita o TEXTO

a.      A leitura da Bíblia é um aspecto do diálogo nosso com Deus. A primeira exigência do diálogo é saber escutar o outro e não reduzi-lo ao tamanho daquilo que eu quero que ele seja. A escuta exige que se faça silêncio em nós, que desarmemos os preconceitos, para que o outro se possa revelar como ele é. A atitude de escuta faz o texto falar na sua alteridade como palavra humana que nos transmite a Palavra de Deus.
b.      O texto é como o povo pobre: não consegue defender-se contra as agressões que o opressor e o manipulador lhe faz. É facilmente vencido, mas dificilmente convencido. Sabe resistir. De certo modo, a necessidade de respeitar e escutar o texto é um lado da medalha. O outro lado é respeitar e escutar o povo.
c.       Isto exige que se situe o texto no seu contexto de origem. A leitura e o estudo do texto devem, por assim dizer, reproduzir o texto, recriá-lo, para que possa aparecer o seu sentido bem concreto dentro da situação do povo daquele tempo como resposta de orientação ou de crítica ao povo.
d.      Isto exige que se levem em conta os resultados da exegese científica. Para a descoberta do sentido do texto é muito importante que o estudo nos leve a conhecer a situação econômica, social, política e ideológica do povo daquele tempo.
e.      Uma leitura que respeita o texto deve tomar todas as precauções possíveis para não utilizar ou manipular o texto, (nem para conservar e nem para transformar) e, assim, não projetar as nossas próprias ideias e desejos dentro do texto.

4.      Leitura que liga FÉ E VIDA

Articulando entre si os três critérios vindos do povo pobre, a leitura bíblica que daí resulta desloca o eixo da interpretação e retoma algumas características básicas da mais antiga tradição do povo de Deus:
a.      A preocupação principal já não é o descobrir o sentido que a Bíblia tinha no passado, mas sim o sentido que o Espírito comunica hoje à sua Igreja por meio do texto bíblico. Este tipo de leitura era chamada Lectio Divina. Ela procura descobrir o Sensus Spiritualis. É a leitura de fé que procura, com a ajuda da Bíblia, descobrir a ação da Palavra de Deus na vida.
b.      A Bíblia é lida não só como livro que descreve a história do passado, mas também como espelho (sim-bolo) da história que acontece hoje na vida das pessoas, das comunidades, dos povos da América Latina. É o que os antigos chamavam o sentido simbólico. A busca deste sentido exprime a convicção de fé de que Deus continua falando a nós pelos fatos da vida.
c.       A preocupação principal já não é interpretar o texto, mas sim interpretar a vida, a história nossa, por meio do texto. Deslocou-se o eixo do texto para a vida. É o que Santo Agostinho descreveu na comparação dos Dois Livros. A Bíblia, o Segundo Livro, nos ajuda a interpretar a vida, o Primeiro Livro.



5.      Leitura em DEFESA DA VIDA

a.      O que temos de mais ecumênica e universal é a vida e a vontade de ter vida em abundância. Esta vontade de viver como gente e de ter vida mais justa e mais abundante existe sobretudo entre os pobres e oprimidos. O povo pobre é ecumênico quando lê a Bíblia. A leitura que faz é em defesa da vida ameaçada e reprimida. A própria Bíblia confirma a exatidão desta atitude ecumênica. No princípio, Deus criou a vida para ser vida abençoada. Chamou Abraão, para que o povo de Abraão recuperasse para todos a bênção da vida perdida por causa do pecado. A Bíblia surgiu e existe para iluminar a vida e defendê-la, para que seja vivida em abundância.
b.      Na situação em que vive o povo na América Latina, uma tal leitura a serviço da vida, necessariamente deve ser libertadora. Pois, a vida do povo está sendo ameaçada pelas forças da morte, explorada iniquamente. Já não é vida em abundância, não tem condições de ser vida de gente. A leitura é ecumênica quando anima o povo a se organizar para defender a vida, para lutar contra as forças da morte, para libertar-se de tudo o que o oprime.
Uma tal leitura realiza aquilo que dizia Santo Agostinho: transforma a realidade e a vida para que se torne novamente uma teofania, uma revelação de Deus.

6.     LEITURA COMPROMETIDA

Este tipo de leitura da Bíblia, quando conduzida com fidelidade, vai abrindo, aos poucos, os nossos olhos sobre a realidade e nos levará a uma opção pelos pobres e a um compromisso mais firme com a sua causa.
a.      Aos poucos a leitura começa a ser feita a partir de um outro lugar social, não mais a partir do lugar dos sábios e entendidos, mas a partir do lugar dos pequenos. Sim, Pai, eu te agradeço, porque assim foi do teu agrado.
b.      A leitura é feita não só para conhecer melhor o sentido da Bíblia, mas também e sobretudo para praticá-la. Não só ouve a palavra, mas a coloca em prática. A informação obtida pelo estudo é em vista da prática transformadora, para que novamente, a face de Deus seja revelada.
c.       Uma tal leitura comprometida com os pobres, quando feita em comunidade, aos poucos começa a assumir uma dimensão política, pois tem a ver com a conversão não só pessoal, mas também comunitária e social.

7.      LEITURA FIEL

Resumindo tudo, este tipo de leitura nada mais pretende do que ser fiel ao objetivo da própria Bíblia.
a.      O objetivo da Bíblia é um só: ajudar o povo a descobrir que Deus chegou perto para escutar o clamor dos pobres e caminhar com eles, o mesmo Deus que outrora caminhou com o povo de Israel, e a experimentar hoje a presença de Deus, Javé, Emanuel, Deus conosco, Deus Libertador. A leitura da Bíblia deve ser fiel ao objetivo da Palavra de Deus.
b.      A chave principal da Bíblia é Jesus, morto e ressuscitado, vivo no meio da comunidade. A leitura da Bíblia tem como objetivo: ajudar o povo a descobrir a grandeza do poder com que Deus acompanha e liberta o seu povo, a saber, o mesmo poder que Ele usou para tirar Jesus da morte. É o que São Paulo pedia para a comunidade de Éfeso. Fizemos esta enumeração longa e detalhada das características da leitura cristã da Bíblia para, por meio delas, oferecer um quadro permanente de referências. De vez em quando, é bom fazer uma revisão da nossa prática e do tipo de leitura que estamos fazendo da Bíblia. Aí, estas sete características podem servir como critério de avaliação e de revisão.


PERGUNTAS PARA REFLEXÃO PESSOAL E EM GRUPOS:

1) O que nos chama a atenção neste artigo?
2) O que é e como se faz a Leitura Popular da Bíblia?
3) Porque a leitura da Bíblia é um aspecto do diálogo nosso com Deus?








* Texto retirado do livro O povo faz caminho – uma leitura latino-americana da Bíblia. 1988, p. 7-11.
[1] Arte-Vida de Luís Henrique.

Nenhum comentário: