LEITURA POPULAR DA
BÍBLIA
I – Critérios de
leitura da Bíblia
1.
Existe
uma leitura da Bíblia feita pelos pobres deste Continente nas suas Comunidades
Eclesiais de Base. A leitura dos pobres, apesar das diferenças próprias de cada
povo, tem algumas características comuns a todos:
a. Os pobres levam consigo
para dentro da Bíblia os problemas da sua vida; leem a Bíblia a partir da sua
realidade e da sua luta.
b. A leitura é feita em
comunidade; ela é antes de tudo, um ato de fé, uma prática orante, uma
atividade comunitária.
c. Eles fazem uma leitura
obediente; respeitam o texto, pois se colocam à escuta do que Deus tem a dizer,
dispostos a mudar se Ele o exigir.
2. Esta prática tão
simples dos pobres é fundamentalmente fiel à prática da mais antiga Tradição da
Igreja. Por isso mesmo, ela nos oferece os princípios ou critérios que devem
orientar a leitura e o estudo que vamos fazer da Bíblia, e nos aponta o
objetivo que esta leitura quer alcançar na nossa vida.
3. O objetivo: escutar
Deus hoje. FÉ COMUNIDADE + POVO
REALIDADE + TEXTO BÍBLIA.
4. Quando articulados
entre si, estes três critérios geram um tipo de leitura bíblica, cujas
características são as seguintes:
II – Características da
leitura cristã da Bíblia
1.
Leitura que parte da
REALIDADE
a. A certeza maior que a
Bíblia nos comunica é esta: Deus escuta o clamor do seu povo oprimido.
Ele está presente na vida e na história deste povo para libertar. Por isso,
como o povo e como Jesus, devemos levar para dentro da Bíblia a realidade
conflitiva em que vivemos e que faz o povo gritar de dor. A situação do povo
deve estar sempre presente durante a leitura da Bíblia. Antes de recorrer à
Bíblia, Jesus quis conhecer a situação dos dois discípulos de Emaús: De
que estão falando? Por que estão tristes?
b. Por isso mesmo, também
no estudo da Bíblia, a primeira preocupação deve ser: descobrir, através de uma
leitura atenta do texto, a realidade concreta e conflitiva do povo que gerou o
texto e em vista da qual ele foi formulado.
c. Na maneira de estudar a
situação do tempo da Bíblia, convém utilizar os mesmos critérios de análise que
usamos para estudar a situação econômica, social, política e religiosa do povo
de hoje. Isto permite realizar o confronto entre a problemática de hoje e de
ontem, de que falava o Papa Paulo VI no seu discurso aos exegetas italianos.
2.
Leitura feita em
COMUNIDADE
a. A Bíblia é o livro do
povo, da comunidade, da Igreja. Por isso, o lugar da sua leitura é a
comunidade. A norma da sua interpretação é a fé da comunidade, da Igreja. Mesmo
fazendo leitura individual, estou lendo o livro da comunidade, da Igreja. O sentido
que se procura é um sentido comunitário, que eu, como indivíduo, devo assumir
por ser membro da comunidade. Interpretar é, antes de tudo, uma tarefa
comunitária, em que todos participam. Não é tarefa de um único fulano
que estudou mais do que os outros. O estudioso, o exegeta, participa com sua
parte e se coloca a serviço, como todo mundo.
b. A descoberta do sentido
que a Bíblia tem para nós não é fruto só do estudo, mas também da ação do Espírito
Santo. Isto exige que se crie um ambiente de participação, de fé, de oração e
de celebração, que dê espaço à ação do Espírito Santo, o mesmo Espírito que está
na origem da Bíblia e que, conforme a promessa de Jesus, nos vai revelar o
sentido das suas palavras. A oração cria o espaço necessário para a escuta do
apelo do Espírito Santo.
c. A leitura e a interpretação
da Bíblia não podem ser atividades separadas do resto da vida da comunidade,
mas envolvem, animam e dinamizam todas as atividades e lutas dos membros da
comunidade.
Isto terá o seu reflexo sobre o método e as dinâmicas que se adotam.
d. No estudo do texto,
devemos ter a preocupação não só em descobrir qual era a realidade do povo
daquele tempo, mas também como o texto expressava a fé da comunidade daquele
tempo e como ele respondia àquela situação concreta e conflitiva em que o povo
se encontrava.
3.
Leitura que respeita o
TEXTO
a. A leitura da Bíblia é
um aspecto do diálogo nosso com Deus. A primeira exigência do diálogo é saber
escutar o outro e não reduzi-lo ao tamanho daquilo que eu quero que ele seja.
A escuta exige que se faça silêncio em nós, que desarmemos os preconceitos,
para que o outro se possa revelar como ele é. A atitude de escuta faz o texto
falar na sua alteridade como palavra humana que nos transmite a Palavra de
Deus.
b. O texto é como o povo
pobre: não consegue defender-se contra as agressões que o opressor e o
manipulador lhe faz. É facilmente vencido, mas dificilmente convencido. Sabe resistir.
De certo modo, a necessidade de respeitar e escutar o texto é um lado da
medalha. O outro lado é respeitar e escutar o povo.
c. Isto exige que se situe
o texto no seu contexto de origem. A leitura e o estudo do texto devem, por
assim dizer, reproduzir o texto, recriá-lo, para que possa aparecer o seu
sentido bem concreto dentro da situação do povo daquele tempo como resposta de
orientação ou de crítica ao povo.
d. Isto exige que se levem
em conta os resultados da exegese científica. Para a descoberta do sentido do
texto é muito importante que o estudo nos leve a conhecer a situação econômica,
social, política e ideológica do povo daquele tempo.
e. Uma leitura que
respeita o texto deve tomar todas as precauções possíveis para não utilizar ou
manipular o texto, (nem para conservar e nem para transformar) e, assim, não projetar
as nossas próprias ideias e desejos dentro do texto.
4.
Leitura que liga FÉ E
VIDA
Articulando entre si os
três critérios vindos do povo pobre, a leitura bíblica que daí resulta desloca
o eixo da interpretação e retoma algumas características básicas da mais antiga
tradição do povo de Deus:
a. A preocupação principal
já não é o descobrir o sentido que a Bíblia tinha no passado, mas sim o sentido
que o Espírito comunica hoje à sua Igreja por meio do texto bíblico. Este tipo
de leitura era chamada Lectio Divina. Ela procura descobrir
o Sensus
Spiritualis. É a leitura de fé que procura, com a ajuda da Bíblia,
descobrir a ação da Palavra de Deus na vida.
b. A Bíblia é lida não só
como livro que descreve a história do passado, mas também como espelho (sim-bolo)
da história que acontece hoje na vida das pessoas, das comunidades, dos povos
da América Latina. É o que os antigos chamavam o sentido simbólico. A busca
deste sentido exprime a convicção de fé de que Deus continua falando a nós
pelos fatos da vida.
c. A preocupação principal
já não é interpretar o texto, mas sim interpretar a vida, a história nossa, por
meio do texto. Deslocou-se o eixo do texto para a vida. É o que Santo Agostinho
descreveu na comparação dos Dois Livros. A Bíblia, o Segundo
Livro, nos ajuda a interpretar a vida, o Primeiro Livro.
5.
Leitura em DEFESA DA
VIDA
a. O que temos de mais
ecumênica e universal é a vida e a vontade de ter vida em abundância. Esta vontade de viver
como gente e de ter vida mais justa e mais abundante existe sobretudo entre os
pobres e oprimidos. O povo pobre é ecumênico quando lê a Bíblia. A leitura que
faz é em defesa da vida ameaçada e reprimida. A própria Bíblia confirma a
exatidão desta atitude ecumênica. No princípio, Deus criou a vida para ser vida
abençoada. Chamou Abraão, para que o povo de Abraão recuperasse para todos a bênção
da vida perdida por causa do pecado. A Bíblia surgiu e existe para iluminar a
vida e defendê-la, para que seja vivida em abundância.
b. Na situação em que vive
o povo na América Latina, uma tal leitura a serviço da vida,
necessariamente deve ser libertadora. Pois, a vida do povo está sendo ameaçada
pelas forças da morte, explorada iniquamente. Já não é vida em abundância, não tem
condições de ser vida de gente. A leitura é ecumênica quando anima o
povo a se organizar para defender a vida, para lutar contra as forças da morte,
para libertar-se de tudo o que o oprime.
Uma tal leitura realiza
aquilo que dizia Santo Agostinho: transforma a realidade e a vida para que se
torne novamente uma teofania, uma revelação de Deus.
6.
LEITURA COMPROMETIDA
Este tipo de leitura da
Bíblia, quando conduzida com fidelidade, vai abrindo, aos poucos, os nossos
olhos sobre a realidade e nos levará a uma opção pelos pobres e a um
compromisso mais firme com a sua causa.
a. Aos poucos a leitura
começa a ser feita a partir de um outro lugar social, não mais a partir do
lugar dos sábios e entendidos, mas a partir do lugar dos pequenos.
Sim,
Pai, eu te agradeço, porque assim foi do teu agrado.
b. A leitura é feita não só
para conhecer melhor o sentido da Bíblia, mas também e sobretudo para praticá-la.
Não
só ouve a palavra, mas a coloca em prática. A informação obtida pelo
estudo é em vista da prática transformadora, para que novamente, a face de Deus
seja revelada.
c. Uma tal leitura
comprometida com os pobres, quando feita em comunidade, aos poucos começa a
assumir uma dimensão política, pois tem a ver com a conversão não só pessoal,
mas também comunitária e social.
7.
LEITURA FIEL
Resumindo tudo, este
tipo de leitura nada mais pretende do que ser fiel ao objetivo da própria
Bíblia.
a. O objetivo da Bíblia é
um só: ajudar o povo a descobrir que Deus chegou perto para escutar o clamor
dos pobres e caminhar com eles, o mesmo Deus que outrora caminhou com o
povo de Israel, e a experimentar hoje a presença de Deus, Javé, Emanuel, Deus
conosco, Deus Libertador. A leitura da Bíblia deve ser fiel ao objetivo da
Palavra de Deus.
b. A chave principal da Bíblia
é Jesus, morto e ressuscitado, vivo no meio da comunidade. A leitura da Bíblia
tem como objetivo: ajudar o povo a descobrir a grandeza do poder com que Deus
acompanha e liberta o seu povo, a saber, o mesmo poder que Ele usou para tirar
Jesus da morte. É o que São Paulo pedia para a comunidade de Éfeso. Fizemos esta
enumeração longa e detalhada das características da leitura cristã da Bíblia
para, por meio delas, oferecer um quadro permanente de referências. De vez em
quando, é bom fazer uma revisão da nossa prática e do tipo de leitura que
estamos fazendo da Bíblia. Aí, estas sete características podem servir como
critério de avaliação e de revisão.
PERGUNTAS
PARA REFLEXÃO PESSOAL E EM GRUPOS:
1) O que nos chama a atenção neste artigo?
2) O que é e como se faz a Leitura Popular da Bíblia?
3) Porque a leitura da Bíblia é um aspecto do diálogo nosso com
Deus?