Teologia da Libertação
(Revista História Viva - 2005)
J. B. Libanio
Parafraseando H. Vaz, a teologia da América Latina era uma teologia-reflexo. E com a TdL passou a ser considerada teologia-fonte, para seu próprio Continente, mas também para outros países e inclusive para a própria Europa.
Os teólogos latino-americanos seguiam quase exclusivamente a neoescolástica ensinada e ditada pela Universidade Gregoriana de Roma e ainda assim em tom menor. E depois da Conferência dos Bispos Latino-americanos em Medellín, Colômbia, em 1968, na esteira da liberdade aberta pelo Concílio Vaticano II, Gustavo Gutiérrez lançou o livro programático “Teología de la liberación” em 1971. A partir daí iniciou-se uma trajetória que prossegue até hoje com altos e baixos publicitários, com aceitação e rejeição eclesiástica, mas sempre coerente com a opção central de produzir uma teologia a partir da prática libertadora dos pobres.
A cultura midiática tem criado a consciência de que morreu, acabou, tudo o que deixou de ser notícia. A publicidade tornou-se o critério de realidade. E por isso, freqüentemente se pergunta se a TdL não desapareceu uma vez que já não se fala quase nada dela. De tempos em tempos, aparece alguma referência de soslaio. Entretanto, a publicidade nunca foi critério de relevância e verdade. Ela vive da emoção e da gigantesca rotatividade das notícias. A partir dela os juízos são superficiais. O fato de a TdL deixar de freqüentar as manchetes do mundo da mass media e das instâncias eclesiásticas não significa seu desaparecimento. Ela marcou e continua a marcar o universo teológico, a vida da Igreja e a sociedade.
O mundo teológico
A teologia católica dos últimos séculos se elaborou nas Faculdades teológicas romanas sob a forma escolástica e na Europa central em diálogo com a modernidade. Ambas se preocupavam quase exclusivamente com a intelecção da fé predominantemente para os estudantes de teologia e para quem se interessava diretamente por ela. Sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, alguns teólogos europeus assumiram discutir os temas teológicos em confronto com as questões que as ciências e as filosofias modernas levantavam. Permaneciam, no entanto, no nível da compreensão do significado da fé.
A originalidade da TdL consistiu em que ela modificou a pergunta de base. Não buscava uma simples melhor compreensão da fé cristã diante da problemática intelectual do momento presente. Quis ir mais longe. Foi antes de tudo, uma libertação da teologia dos moldes europeus para responder a nossa situação (J. L. Segundo). Por isso, ela parte dos problemas da América Latina.
O teólogo europeu se pergunta pela razoabilidade e plausibilidade da fé cristã para quem está imerso na cultura moderna. O teólogo da libertação desloca a questão: como crer num mundo de tanta injustiça e opressão? Como ser cristão nele?
Ao responder essa questão, modificou o método da teologia. Partiu da práxis entendida como ação transformadora da realidade social. Aí hauriu as perguntas. As respostas se orientaram também para a práxis do cristão. E por isso o teólogo sentiu-se necessitado de inserir-se, ele mesmo, nessa práxis e deixar sua teologia ser questionada por ela. Substituiu a figura do teólogo acadêmico europeu por um teólogo metido na pastoral. Uma “teologia pé no chão” (Cl. Boff), “uma teologia à escuta do povo” (L. Boff), uma “teologia da enxada” (J. Comblin).
Como a primeira teologia desde a periferia com método próprio questionou as outras, sobretudo quanto a suas implicações ideológicas, relevância social e caráter profético. De modo original e profundo, articulou fé e realidade social com mútuo enriquecimento. Os binômios, que simbolizam esse trabalho teórico exigente, traduzem bem a intenção fundamental da sua metodologia: fé e vida, Revelação e realidade, mística e militância, ortodoxia e ortopráxis, etc. Levantou a suspeita de que muita teologia produzida na Igreja é alienante e não provoca o cristão a um compromisso social. Nisso ela se tornou uma teologia-fonte e crítica para a Europa e, de modo especial, para o resto do Terceiro Mundo que necessitava de uma TdL.
A vida da Igreja
Sua influência na Igreja foi significativa. Num primeiro momento, na Igreja da América Latina e especialmente no Brasil. Ela alimentou as Comunidades eclesiais de base que surgiram na década de 60. Estas nasceram em íntima ligação com a leitura popular da Bíblia e com o compromisso com as lutas populares em busca de libertação. Existe atualmente uma rede de comunidades praticamente em todas as dioceses do Brasil e nos outros países da América Latina. "As CEBs constituem hoje, em nosso país, uma realidade que expressa um dos traços mais dinâmicos da vida da Igreja e, por motivos diversos, vai despertando o interesse de outros setores da sociedade". Elas são "um novo modo de ser Igreja". "Fator de renovação interna e novo modo de a Igreja estar presente ao mundo, elas constituem, por certo, um fenômeno irreversível, senão nos detalhes de sua estruturação, ao menos no espírito que as anima". São afirmações de um documento oficial da Igreja do Brasil. Elas foram e ainda são sustentadas na fé pela TdL, traduzida em linguagem popular, e pela leitura militante da Escritura, segundo a metologia de um dos teólogos da libertação mais eminente: Carlos Mesters . Para ter-se idéia do alcance dessa presença, estudiosos contabilizam umas 100 mil CEBs envolvendo alguns milhões de fiéis.
A TdL influenciou a produção de textos importantes do magistério eclesiástico desde Medellín, quando nascia, até Santo Domingo em termos de Igreja da América Latina. No Brasil, documentos significativos do episcopado foram marcados pela TdL. Os temas mais importantes das Campanhas da Fraternidade por ocasião da Quaresma e as Diretrizes básicas da Pastoral do país não se entendem sem ela.
A repercussão foi além da América Latina. É fato inédito que uma teologia em tão pouco tempo tenha tido repercussões no próprio centro do Catolicismo. Roma se manifestou a respeito dela de uma maneira paradoxal. A imprensa projetou a idéia de que o Papa João Paulo II a condenara e que os processos contra L. Boff e G. Gutiérrez eram a prova cabal de tal condenação. A questão é mais complexa e matizada.
De fato, houve um documento da Congregação para a Doutrina da Fé que fez pesadas críticas à TdL. Lendo-o, porém, atentamente, percebe-se que ele não se dirige diretamente a nenhuma teologia concreta. Não condena nenhum teólogo da libertação. Ele descreve um tipo de teologia, a modo de modelo, sem dizer onde ele se realiza, e condena-o. A reação dos teólogos da libertação foi dizer que eles também não se identificavam com o modelo condenado e por isso não sentiam afetados pelo documento. E aí terminou a história.
Mais: para amenizar romanamente a questão vieram dois outros documentos. Um da mesma Congregação que também, em termos gerais, defende certo tipo de libertação. João Paulo II, para tirar a impressão de que Roma se opunha aos reclamos fundamentais da TdL, dirigiu uma mensagem ao episcopado brasileiro em que escreveu:: “estamos convencidos, nós e os Senhores (os bispos do Brasil), de que a TdL é não só oportuna mas útil e necessária”. Noutro lugar afirma uma tese central da TdL: “Os pobres deste País, que têm nos Senhores os seus Pastores, os pobres deste Continente são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo seria defraudá-los e desiludi-los” (João Paulo II, Mensagem aos Bispos do Brasil, São Paulo, Paulinas, 1986, n. 5 e 6.). No fundo, Roma aceitou as teses fundamentais da TdL, por serem evangélicas e segundo a melhor de sua Tradição: a opção pela libertação dos pobres, a dimensão social da fé e as expressões populares das comunidades de base.
Outra questão de atrito da TdL com setores da Igreja veio por causa do marxismo. A sua relação com ele tem nuanças. Rejeita o marxismo enquanto sistema global, ideologia e filosofia materialista. Assume dele o traço dialético e elementos da análise da sociedade. Críticas superficiais e sensacionalistas tentaram identificá-la grotescamente com o marxismo. Isso fazia parte do jogo ideológico de
setores conservadores tanto eclesiásticos como políticos.
A reserva, que o Vaticano II teve em relação ao marxismo, não veio de sua dimensão social, mas da forma atéia de sua realização e de sua visão do ser humano sem nenhuma transcendência. A queda do socialismo real confirmou a verdade da crítica da Igreja. Não surgiu naqueles países nenhum homem novo, mas lá estavam as mesmas corrupções e mazelas. Para bem da verdade, as mesmas críticas Roma tem em relação ao capitalismo por sua base materialista e compreensão do ser humano como ser de necessidades materiais. A Igreja institucional adverte para idêntica catástrofe nos países ricos.
Numa palavra, a TdL despertou a Igreja para o valor evangélico do compromisso libertador com os pobres numa linha para além do tradicional assistencialismo caridoso. Alimentou a prática pastoral de muitas Igrejas, comunidades e cristãos até o heroísmo do martírio.
A sociedade
Sua repercussão na sociedade sofreu oscilações. Houve um momento em que a mídia nacional e mundial atribuiu relevo à TdL, pois ela significou novidade e originalidade no mundo teológico. Além disso, ela exprimiu, em termos religiosos, reação crítica ao Regime militar do Brasil e aos de muitos outros países da América Latina, atraindo o apoio da imprensa liberal. Esta se tinha também alinhado a tal comportamento. Veio muito a calhar nesse processo liberalizante dar relevo à condenação de L. Boff, como exercício de prepotência por parte da Igreja institucional. Ao atacar-lhe tal atitude, fazia-o indiretamente ao Estado brasileiro, muito mais opressor e castrador com censuras e torturas.
Visto do lado da Igreja, estavam em jogo outras questões referentes, não diretamente à temática da libertação, mas à sua estrutura de governo. No entanto, tal mobilização da publicidade serviu para marcar mais a presença social da TdL.
O seu verdadeiro serviço crítico foi outro. Acima foi dito que ela alimentou as CEBs, fazendo que a dimensão libertadora lhes atravessasse a vida. Uma de suas originalidades foi articular a leitura da Escritura, as celebrações, muitos dos ministérios com as lutas populares, com os movimentos de melhoria das condições de vida e de trabalho. Elas tiveram certa importância no contexto social do Brasil. A jornalista H. Salem afirma que as CEBs foram o berço da grande maioria dos movimentos populares nascidos em São Paulo e que apressaram o fim do militarismo. E portanto, indiretamente está a TdL. Castelo Branco, na sua famosa coluna do Jornal do Brasil, dedicou espaço à relevância das CEBs nas campanhas eleitorais. Agentes de Pastoral do Pará comentavam que certo candidato ao Senado, conservador, de tradição e eleição garantida, foi derrotado pelo trabalho de formiga das CEBs.
O próprio surgimento do PT não se explica sem significativa presença da TdL. O MST, hoje considerado o movimento social de maior peso no país, e quem sabe, em todo Continente, teve seus inícios no seio da Igreja da libertação.
A TdL desbloqueou os cristãos para o compromisso social radical em nome da fé, mostrando que o maior problema da fé na América Latina não estava em questões dogmáticas, mas como enfrentar à sua luz a situação de opressão, de exploração das grandes massas populares. Os cristãos podiam, portanto, engajar-se no processo de libertação, motivados e iluminados pela fé. Não precisavam temer nenhuma contradição fundamental entre ela e a luta libertadora dos pobres.
Sua função não era organizar, nem programar as lutas pela libertação. Isso competia aos movimentos políticos. Mas motivar e iluminar o cristão com suas reflexões nessa luta, sustentando-lhes a fé. Pois vimos com tristeza no passado muitos cristãos que, ao engajarem-se na luta, a perderam. E isso porque viram oposição e não articulação entre fé e política, entre fé e luta libertadora, entre fé e compromisso social.
Mais. A TdL causou duplo impacto contraditório sobre a sociedade. Para os pobres, oprimidos e excluídos, tornou-se referencial indiscutível. Encontraram nela elementos e motivos de esperança para sua luta libertadora. Para outros segmentos da sociedade, foi o grande inimigo a ser combatido repressivamente até as raias do assassinato de seus protagonistas.
Situação atual
E agora qual é a sua situação? Conserva a opção fundamental de teologizar a partir da experiência de Deus nos pobres e de identificar-se com a causa deles. A queda do socialismo real deixou os pobres ainda mais desprovidos. O reinado solitário do neoliberalismo é-lhes desastroso. A TdL, expressão teológica da Igreja dos pobres, faz-se-lhes luz, fonte de esperança e utopia.
Novas questões surgiram vindas das ciências, da ecologia, da antropologia e de muitos novos movimentos sociais mundiais como desafios à TdL. Para respondê-los, ela precisou ultrapassar a leitura sócio-estrutural da realidade que até então fazia. Construiu uma teologia negra, indígena, feminista com originalidade e criatividade. Ao tocar questões culturais e antropológicas, atingiu raízes mais profundas da dominação e, por conseguinte, percebeu melhor a exigência de uma cultura da solidariedade, da partilha, do respeito às diferenças, da colaboração a partir das vítimas da história. Em comunhão com o movimento ecológico, mostrou a articulação entre o grito dos pobres e o grito da Terra. Ampliou assim o horizonte de uma visão puramente ambientalista para uma ecologia social, mental e integral.
Mais recentemente, a TdL tem enfrentado o desafio do fenômeno religioso da pós-modernidade que exaspera a subjetividade e levanta uma onda espiritualista de corte alienante. Toca-lhe recuperar a seiva espiritual e mística que a alimentou desde os inícios e propor verdadeira espiritualidade da libertação. Esta vem cobrir-lhe o déficit espiritual e afetivo. Compromisso libertador, mística e afetividade: os três ingredientes da atual TdL.
(Revista História Viva - 2005)
J. B. Libanio
Parafraseando H. Vaz, a teologia da América Latina era uma teologia-reflexo. E com a TdL passou a ser considerada teologia-fonte, para seu próprio Continente, mas também para outros países e inclusive para a própria Europa.
Os teólogos latino-americanos seguiam quase exclusivamente a neoescolástica ensinada e ditada pela Universidade Gregoriana de Roma e ainda assim em tom menor. E depois da Conferência dos Bispos Latino-americanos em Medellín, Colômbia, em 1968, na esteira da liberdade aberta pelo Concílio Vaticano II, Gustavo Gutiérrez lançou o livro programático “Teología de la liberación” em 1971. A partir daí iniciou-se uma trajetória que prossegue até hoje com altos e baixos publicitários, com aceitação e rejeição eclesiástica, mas sempre coerente com a opção central de produzir uma teologia a partir da prática libertadora dos pobres.
A cultura midiática tem criado a consciência de que morreu, acabou, tudo o que deixou de ser notícia. A publicidade tornou-se o critério de realidade. E por isso, freqüentemente se pergunta se a TdL não desapareceu uma vez que já não se fala quase nada dela. De tempos em tempos, aparece alguma referência de soslaio. Entretanto, a publicidade nunca foi critério de relevância e verdade. Ela vive da emoção e da gigantesca rotatividade das notícias. A partir dela os juízos são superficiais. O fato de a TdL deixar de freqüentar as manchetes do mundo da mass media e das instâncias eclesiásticas não significa seu desaparecimento. Ela marcou e continua a marcar o universo teológico, a vida da Igreja e a sociedade.
O mundo teológico
A teologia católica dos últimos séculos se elaborou nas Faculdades teológicas romanas sob a forma escolástica e na Europa central em diálogo com a modernidade. Ambas se preocupavam quase exclusivamente com a intelecção da fé predominantemente para os estudantes de teologia e para quem se interessava diretamente por ela. Sobretudo depois da Segunda Guerra Mundial, alguns teólogos europeus assumiram discutir os temas teológicos em confronto com as questões que as ciências e as filosofias modernas levantavam. Permaneciam, no entanto, no nível da compreensão do significado da fé.
A originalidade da TdL consistiu em que ela modificou a pergunta de base. Não buscava uma simples melhor compreensão da fé cristã diante da problemática intelectual do momento presente. Quis ir mais longe. Foi antes de tudo, uma libertação da teologia dos moldes europeus para responder a nossa situação (J. L. Segundo). Por isso, ela parte dos problemas da América Latina.
O teólogo europeu se pergunta pela razoabilidade e plausibilidade da fé cristã para quem está imerso na cultura moderna. O teólogo da libertação desloca a questão: como crer num mundo de tanta injustiça e opressão? Como ser cristão nele?
Ao responder essa questão, modificou o método da teologia. Partiu da práxis entendida como ação transformadora da realidade social. Aí hauriu as perguntas. As respostas se orientaram também para a práxis do cristão. E por isso o teólogo sentiu-se necessitado de inserir-se, ele mesmo, nessa práxis e deixar sua teologia ser questionada por ela. Substituiu a figura do teólogo acadêmico europeu por um teólogo metido na pastoral. Uma “teologia pé no chão” (Cl. Boff), “uma teologia à escuta do povo” (L. Boff), uma “teologia da enxada” (J. Comblin).
Como a primeira teologia desde a periferia com método próprio questionou as outras, sobretudo quanto a suas implicações ideológicas, relevância social e caráter profético. De modo original e profundo, articulou fé e realidade social com mútuo enriquecimento. Os binômios, que simbolizam esse trabalho teórico exigente, traduzem bem a intenção fundamental da sua metodologia: fé e vida, Revelação e realidade, mística e militância, ortodoxia e ortopráxis, etc. Levantou a suspeita de que muita teologia produzida na Igreja é alienante e não provoca o cristão a um compromisso social. Nisso ela se tornou uma teologia-fonte e crítica para a Europa e, de modo especial, para o resto do Terceiro Mundo que necessitava de uma TdL.
A vida da Igreja
Sua influência na Igreja foi significativa. Num primeiro momento, na Igreja da América Latina e especialmente no Brasil. Ela alimentou as Comunidades eclesiais de base que surgiram na década de 60. Estas nasceram em íntima ligação com a leitura popular da Bíblia e com o compromisso com as lutas populares em busca de libertação. Existe atualmente uma rede de comunidades praticamente em todas as dioceses do Brasil e nos outros países da América Latina. "As CEBs constituem hoje, em nosso país, uma realidade que expressa um dos traços mais dinâmicos da vida da Igreja e, por motivos diversos, vai despertando o interesse de outros setores da sociedade". Elas são "um novo modo de ser Igreja". "Fator de renovação interna e novo modo de a Igreja estar presente ao mundo, elas constituem, por certo, um fenômeno irreversível, senão nos detalhes de sua estruturação, ao menos no espírito que as anima". São afirmações de um documento oficial da Igreja do Brasil. Elas foram e ainda são sustentadas na fé pela TdL, traduzida em linguagem popular, e pela leitura militante da Escritura, segundo a metologia de um dos teólogos da libertação mais eminente: Carlos Mesters . Para ter-se idéia do alcance dessa presença, estudiosos contabilizam umas 100 mil CEBs envolvendo alguns milhões de fiéis.
A TdL influenciou a produção de textos importantes do magistério eclesiástico desde Medellín, quando nascia, até Santo Domingo em termos de Igreja da América Latina. No Brasil, documentos significativos do episcopado foram marcados pela TdL. Os temas mais importantes das Campanhas da Fraternidade por ocasião da Quaresma e as Diretrizes básicas da Pastoral do país não se entendem sem ela.
A repercussão foi além da América Latina. É fato inédito que uma teologia em tão pouco tempo tenha tido repercussões no próprio centro do Catolicismo. Roma se manifestou a respeito dela de uma maneira paradoxal. A imprensa projetou a idéia de que o Papa João Paulo II a condenara e que os processos contra L. Boff e G. Gutiérrez eram a prova cabal de tal condenação. A questão é mais complexa e matizada.
De fato, houve um documento da Congregação para a Doutrina da Fé que fez pesadas críticas à TdL. Lendo-o, porém, atentamente, percebe-se que ele não se dirige diretamente a nenhuma teologia concreta. Não condena nenhum teólogo da libertação. Ele descreve um tipo de teologia, a modo de modelo, sem dizer onde ele se realiza, e condena-o. A reação dos teólogos da libertação foi dizer que eles também não se identificavam com o modelo condenado e por isso não sentiam afetados pelo documento. E aí terminou a história.
Mais: para amenizar romanamente a questão vieram dois outros documentos. Um da mesma Congregação que também, em termos gerais, defende certo tipo de libertação. João Paulo II, para tirar a impressão de que Roma se opunha aos reclamos fundamentais da TdL, dirigiu uma mensagem ao episcopado brasileiro em que escreveu:: “estamos convencidos, nós e os Senhores (os bispos do Brasil), de que a TdL é não só oportuna mas útil e necessária”. Noutro lugar afirma uma tese central da TdL: “Os pobres deste País, que têm nos Senhores os seus Pastores, os pobres deste Continente são os primeiros a sentir urgente necessidade deste evangelho da libertação radical e integral. Sonegá-lo seria defraudá-los e desiludi-los” (João Paulo II, Mensagem aos Bispos do Brasil, São Paulo, Paulinas, 1986, n. 5 e 6.). No fundo, Roma aceitou as teses fundamentais da TdL, por serem evangélicas e segundo a melhor de sua Tradição: a opção pela libertação dos pobres, a dimensão social da fé e as expressões populares das comunidades de base.
Outra questão de atrito da TdL com setores da Igreja veio por causa do marxismo. A sua relação com ele tem nuanças. Rejeita o marxismo enquanto sistema global, ideologia e filosofia materialista. Assume dele o traço dialético e elementos da análise da sociedade. Críticas superficiais e sensacionalistas tentaram identificá-la grotescamente com o marxismo. Isso fazia parte do jogo ideológico de
setores conservadores tanto eclesiásticos como políticos.
A reserva, que o Vaticano II teve em relação ao marxismo, não veio de sua dimensão social, mas da forma atéia de sua realização e de sua visão do ser humano sem nenhuma transcendência. A queda do socialismo real confirmou a verdade da crítica da Igreja. Não surgiu naqueles países nenhum homem novo, mas lá estavam as mesmas corrupções e mazelas. Para bem da verdade, as mesmas críticas Roma tem em relação ao capitalismo por sua base materialista e compreensão do ser humano como ser de necessidades materiais. A Igreja institucional adverte para idêntica catástrofe nos países ricos.
Numa palavra, a TdL despertou a Igreja para o valor evangélico do compromisso libertador com os pobres numa linha para além do tradicional assistencialismo caridoso. Alimentou a prática pastoral de muitas Igrejas, comunidades e cristãos até o heroísmo do martírio.
A sociedade
Sua repercussão na sociedade sofreu oscilações. Houve um momento em que a mídia nacional e mundial atribuiu relevo à TdL, pois ela significou novidade e originalidade no mundo teológico. Além disso, ela exprimiu, em termos religiosos, reação crítica ao Regime militar do Brasil e aos de muitos outros países da América Latina, atraindo o apoio da imprensa liberal. Esta se tinha também alinhado a tal comportamento. Veio muito a calhar nesse processo liberalizante dar relevo à condenação de L. Boff, como exercício de prepotência por parte da Igreja institucional. Ao atacar-lhe tal atitude, fazia-o indiretamente ao Estado brasileiro, muito mais opressor e castrador com censuras e torturas.
Visto do lado da Igreja, estavam em jogo outras questões referentes, não diretamente à temática da libertação, mas à sua estrutura de governo. No entanto, tal mobilização da publicidade serviu para marcar mais a presença social da TdL.
O seu verdadeiro serviço crítico foi outro. Acima foi dito que ela alimentou as CEBs, fazendo que a dimensão libertadora lhes atravessasse a vida. Uma de suas originalidades foi articular a leitura da Escritura, as celebrações, muitos dos ministérios com as lutas populares, com os movimentos de melhoria das condições de vida e de trabalho. Elas tiveram certa importância no contexto social do Brasil. A jornalista H. Salem afirma que as CEBs foram o berço da grande maioria dos movimentos populares nascidos em São Paulo e que apressaram o fim do militarismo. E portanto, indiretamente está a TdL. Castelo Branco, na sua famosa coluna do Jornal do Brasil, dedicou espaço à relevância das CEBs nas campanhas eleitorais. Agentes de Pastoral do Pará comentavam que certo candidato ao Senado, conservador, de tradição e eleição garantida, foi derrotado pelo trabalho de formiga das CEBs.
O próprio surgimento do PT não se explica sem significativa presença da TdL. O MST, hoje considerado o movimento social de maior peso no país, e quem sabe, em todo Continente, teve seus inícios no seio da Igreja da libertação.
A TdL desbloqueou os cristãos para o compromisso social radical em nome da fé, mostrando que o maior problema da fé na América Latina não estava em questões dogmáticas, mas como enfrentar à sua luz a situação de opressão, de exploração das grandes massas populares. Os cristãos podiam, portanto, engajar-se no processo de libertação, motivados e iluminados pela fé. Não precisavam temer nenhuma contradição fundamental entre ela e a luta libertadora dos pobres.
Sua função não era organizar, nem programar as lutas pela libertação. Isso competia aos movimentos políticos. Mas motivar e iluminar o cristão com suas reflexões nessa luta, sustentando-lhes a fé. Pois vimos com tristeza no passado muitos cristãos que, ao engajarem-se na luta, a perderam. E isso porque viram oposição e não articulação entre fé e política, entre fé e luta libertadora, entre fé e compromisso social.
Mais. A TdL causou duplo impacto contraditório sobre a sociedade. Para os pobres, oprimidos e excluídos, tornou-se referencial indiscutível. Encontraram nela elementos e motivos de esperança para sua luta libertadora. Para outros segmentos da sociedade, foi o grande inimigo a ser combatido repressivamente até as raias do assassinato de seus protagonistas.
Situação atual
E agora qual é a sua situação? Conserva a opção fundamental de teologizar a partir da experiência de Deus nos pobres e de identificar-se com a causa deles. A queda do socialismo real deixou os pobres ainda mais desprovidos. O reinado solitário do neoliberalismo é-lhes desastroso. A TdL, expressão teológica da Igreja dos pobres, faz-se-lhes luz, fonte de esperança e utopia.
Novas questões surgiram vindas das ciências, da ecologia, da antropologia e de muitos novos movimentos sociais mundiais como desafios à TdL. Para respondê-los, ela precisou ultrapassar a leitura sócio-estrutural da realidade que até então fazia. Construiu uma teologia negra, indígena, feminista com originalidade e criatividade. Ao tocar questões culturais e antropológicas, atingiu raízes mais profundas da dominação e, por conseguinte, percebeu melhor a exigência de uma cultura da solidariedade, da partilha, do respeito às diferenças, da colaboração a partir das vítimas da história. Em comunhão com o movimento ecológico, mostrou a articulação entre o grito dos pobres e o grito da Terra. Ampliou assim o horizonte de uma visão puramente ambientalista para uma ecologia social, mental e integral.
Mais recentemente, a TdL tem enfrentado o desafio do fenômeno religioso da pós-modernidade que exaspera a subjetividade e levanta uma onda espiritualista de corte alienante. Toca-lhe recuperar a seiva espiritual e mística que a alimentou desde os inícios e propor verdadeira espiritualidade da libertação. Esta vem cobrir-lhe o déficit espiritual e afetivo. Compromisso libertador, mística e afetividade: os três ingredientes da atual TdL.
2 comentários:
Parabéns pelo ótimo texto, pessoas como vc não vão deixar se calar a profecia.
Paz e Bem
Rafael,17anos,Pastoral da Juventude de Cruz das Almas - Ba
Obrigado Rafael de Jesus...
Cuidado hein...você tem o nome d'Ele no seu nome.
Com o nome e o sangue do mártir Jesus não se brinca.
Sigamos juntos na luta pela defesa constante da vida até o dia que chegar a Páscoa definitiva.
Abraços com fraternura.
Emerson Sbardelotti
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